quinta-feira, 28 de outubro de 2010

60 minutos

Otávio chegou ao lugar de sempre, na hora marcada. Raul já esperava por ele. Cumprimentaram-se com um aperto de mão, sem excesso de camaradagem. Alto, forte, maxilar quadrado, barba cerrada, sobrancelhas espessas, braços grossos com veias saltadas, Raul era tudo o que Otávio secretamente desejava ser. Otávio sorriu satisfeito ao pensar que, pela próxima hora, teria aquele belo espécime de macho só para ele.

Partiram logo para a ação. Afinal, não havia tempo a perder com conversas desnecessárias. Não era a primeira, nem a segunda vez; assim, a sintonia entre eles se construiu rapidamente. Otávio viu o quadril de Raul colocando-se por trás do seu e, ao sentir a respiração do moreno em seu cangote, teve um leve arrepio que eriçou os pelos de seus braços. Raul então passou a ditar as regras e conduzir os movimentos, e Otávio, obediente, deixou-se levar. O silêncio dos dois era ocasionalmente quebrado pelas palavras de comando de Raul, correspondidas por gemidos entrecortados que pareciam vir do fundo das entranhas de Otávio.

Aos poucos, o semblante de Otávio no espelho foi ganhando contornos de dor, de desespero. Raul não se abalou. Sabia que seu cliente estava ali para ir até o limite. Quando sentia que já não aguentava mais, Otávio emitia um apelo de misericórdia com o olhar, pedindo que parassem. Mas a trégua que o outro lhe dava não era suficiente para que ele se recompusesse, e logo o suplício recomeçava. Raul não tinha dó da agonia de Otávio, sabia muito bem o que tinha de ser feito, e não ostentava o menor sinal de cansaço. No fundo, era isso que fazia Otávio voltar sempre, pedindo mais.

Ao final daqueles 60 minutos, Otávio estava hecho un desastre, sentindo suas carnes ardendo em brasa e latejando. Não sabia nem como conseguiria voltar andando para casa. Raul já tinha recebido o pagamento combinado, e desapareceu. No dia seguinte, Otávio sentaria com alguma dificuldade. Mas não se queixava. Ele sentia que seu corpo precisava daquilo, ele precisava sofrer nas mãos daquele homem. Em quarenta e oito horas, ele sabia que estava fadado a voltar ao mesmo endereço, pronto para se entregar a mais uma hora de sacrifícios com seu personal trainer.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Rapidinhas gastronômicas

A COCOTA DO BAIRRO Esqueça o que você já ouviu sobre "restaurantes de bairro". Apesar de estar escondido no Ipiranga, fora dos holofotes da badalação, o Nico Pasta & Basta não faria feio se estivesse em plena rua Amauri. O ambiente projetado por Roberto Migotto é belíssimo, com mesas dispostas em torno de um átrio iluminado por uma espécie de clarabóia. O menu, de sotaque italiano, tem massas artesanais como o pappardelle com ragu de filé mignon (tem massa mais apetitosa do que o pappardelle?), além de risotos, polentas e carnes - o stinco de cordeiro com risoto de ervas é sensacional. Ótima sugestão para dar uma cara diferente ao seu almoço de domingo - depois, é só dar um giro pelo Parque da Independência para fazer a digestão.

ONDE A ONÇA BEBE ÁGUA Não é de hoje que a revalorização do Centro paulistano devolveu ao Edifício Copan o status de "cult". Quem tem ajudado a trazer buxixo ao sinuoso edifício de Oscar Niemeyer é o Bar da Dona Onça, que virou queridinho da crítica especializada e dos modernos ao propor releituras de pratos clássicos brasileiros, em clima de boteco estilizado (vide os motivos felinos na roupa dos garçons e no cardápio). Confesso que esperava muuuuito mais do picadinho, mas fiquei boquiaberto com o stinco de leitoa caipira com feijão tropeiro e couve refogada. Como diria meu finado pai, é "batuta"! Isso sim é comida brasileira contemporânea. De sobremesa, o pudim já entra no ranking dos melhores da cidade. Só não vá esperando fazer economia. Os preços da casa estão à altura do seu hype, com pratos de R$40 ou mais, o que significa uma conta que chega fácil a R$100 por cabeça.

MUITO ALÉM DO MIOJO No meu último post sobre comidinhas cariocas, dei a entender que o Brasil não tinha casas especializadas em macarrão oriental. Tem sim: um bom exemplo é o Lamen Kazu, um autêntico noodle bar que fica no Largo da Pólvora (Liberdade) e está sempre cheio. Uma boa pedida para quem quer ir além do sushi e explorar outros terrenos da cozinha japonesa. Outro lugar de que tenho gostado muito é o Sobaria, na Vila Mariana, uma casa dedicada à cozinha do... Mato Grosso do Sul. Isso mesmo: por conta de uma imigração maciça de japoneses da ilha de Okinawa, o sobá tornou-se a comida mais típica de Campo Grande, onde é consumida nas ruas e em todo lugar, inclusive como prato-de-resistência das bees na saída da boate. Feita de trigo sarraceno, a massa vem num reconfortante caldo de shoyu e gengibre, com cebolinha e tiras de lombo e omelete. Uma delícia - por apenas R$20 no Sobaria.

THE AMERICAN WAY Uma boa surpresa deste ano que está acabando foi o 210 Diner, em Higienópolis. Depois do francês Ici Bistrô e do italiano Tappo Trattoria, o chef Benny Novak resolveu abrir uma terceira casa, desta vez para servir especialidades da cozinha dos Estados Unidos. Não espere o clima adolescente de casas como Friday's e Outback: 0 210 é mais low profile, quase minimalista. O cardápio é variado e tem preços diferenciados (ligeiramente menores) no almoço. Entre os hambúrgueres, recomendo o piggie burger, coberto com uma saborosa costelinha de porco desfiada em molho barbecue. Se quiser algo mais leve, não perca a omelete, que põe a do Ritz no chinelo. Você escolhe os ingredientes - a combinação de cogumelos, queijo de cabra e molho pesto é simplesmente fodástica.

ÁRABE NADA CLICHÊ Até curto comer uma esfiha benfeita de vez em quando, ou mesmo fazer um pratinho saudável de kibe cru com tabule. Mas acho restaurante árabe/sírio/libanês um programa meio boring. Não me anima a ideia de gastar nisso o meu orçamento de "comer fora". No entanto, fui ao Saj e adorei. Talvez porque não se pareça com restaurante árabe. A casa fica na Vila Madalena e tem aquele "jeitão Palermo de ser" do bairro, com mesas dispostas em uma espécie de terraço interno com muita luz natural. Por uma janela, é possível ver o trabalho de preparação do pão sírio - que chega à mesa quentinho e macio e é um dos pontos altos. Já que está num lugar diferente, saia do lugar-comum e peça a fraldinha cozida na coalhada. Os cubos da carne desmancham no garfo [quer tentar fazer em casa? a receita está aqui].

PARA COMER COM AS DUAS MÃOS Na esquina da Melo Alves com Alameda Tietê, o bar Balcão vem animando os papos-cabeça do povo culturette há mais de 15 anos. Mas só recentemente fui descobrir que, no simpático balcão que serpenteia por todo o salão e dá o nome à casa, é possível comer alguns dos melhores sanduíches da cidade, num pão ciabatta macio como há muito tempo eu não via. Gostei especialmente do Vegetariano, com cogumelos frescos, tomates secos pra lá de saborosos, pesto, rúcula e mussarela de búfala (ingrediente que não consta da receita original, mas pode ser incluído). Tão bom que voltei para repetir a dose já no dia seguinte.

BÍBLIA ANUAL A revista Veja já publicou a edição 2010-2011 do seu anuário Comer & Beber, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na semana em que saem, os guias são vendidos junto com a revista Veja. Depois, algumas bancas de jornal continuam oferecendo o volume separado por algum tempo. É uma fonte de consulta obrigatória, seja pelos restaurantes (divididos por especialidades), seja pelos bares (separados por região da cidade), seja pelas comidinhas (com todas as guloseimas de que você precisava e não sabia). Outras capitais como Salvador e Curitiba também devem estar para ganhar suas edições [aliás, se algum leitor caridoso quiser me mandar os guias dessas cidades, ficarei agradecido!]. Em tempo: o Rio está vivendo sua terceira Restaurant Week, até o dia 31/10. Os cardápios, você confere aqui.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A ferro e fogo

Que atire a primeira pedra quem não tem defeitos. Reza a lenda que os blogueiros vivem de vender o próprio peixe, e se esforçam para revelar só aquilo que consideram seu lado bom. Criam uma projeção de si, passam a acreditar nela e depois tratam de vendê-la ao mundo. Pois hoje vou romper com isso e fazer um mea culpa do meu lado negro, sem mais nem menos. Com a sinceridade que poucos teriam em uma entrevista de emprego, na hora em que lhes perguntam "qual o seu maior defeito?". Nessa hora, a parcela clichê da humanidade certamente responderia "sou perfeccionista" - e arrancaria um bocejo do entrevistador. Eu, que não sou dessas, vou mandar na chincha: sou um cara rancoroso. Pois é.

Não sou o rancoroso-perigoso: aquele tipo vingativo, que espera uma oportunidade para fazer o outro provar do próprio veneno, devolvendo-lhe uma maldade igual ou até maior. Eu apenas guardo as coisas que me fazem de ruim. Quando me destratam, são mal-educados comigo, me esnobam. Ou me sacaneiam pelas costas (ainda que sorrindo na minha frente). Guardo aquilo e não esqueço, jamais. Antes era pior, porque eu era capaz de remoer fatos passados por muito tempo - meses, anos! Do nada, eu resgatava lembranças ruins e me punha a ruminá-las novamente. Hoje, isso só costuma acontecer quando eu volto a cruzar com a pessoa (com algumas eu sou obrigado a conviver socialmente, aí não tem jeito). Nessas situações, eu puxo a ficha dela e as ocorrências aparecem, sem direito a prescrição. Fica tudo registrado no prontuário.

Às vezes a coisa nem é tão grave, o outro não chegou a pisar feio na bola. Apenas deixou de retribuir a consideração que sempre teve de mim. Quando é assim, o que eu faço é redimensionar a relação, cancelando as regalias ao dito cujo, até sentir que a coisa está de igual para igual. Esse equilíbrio nas minhas relações pessoais é algo que eu prezo muito. Se eu vejo que estou dando mais do que recebo, trato de nivelar a balança rapidinho, para não sair mais em desvantagem. Quebro todos os galhos pro amigo e ele é incapaz de me dar uma carona de dez minutos porque não está exatamente no caminho dele? Faço várias concessões de bom grado e nunca recebo uma gentileza? Aí eu passo a ser aquela pessoa que só faz o que quer e não move uma palha pelo outro. E se eu me sentir colocado para escanteio, se perceber que sou o único que procura, investe ou se preocupa, pode ter certeza: o sujeito nunca mais vai ouvir falar de mim. Idem se ele é simpático quando precisa de algo, mas faz a egípcia quando está dentro de um grupo.

Sei que devemos dar por prazer (né, ameegas?), não pela expectativa de receber de volta, mas há casos em que o outro nem sequer dá valor ao que você está fazendo. E se há uma coisa de que eu tenho consciência, é o meu próprio valor. Quando não recebo o tratamento que eu sei que mereço, fecho a porta, deixo de apostar ali, canalizo minhas expectativas em outra direção. Afinal, persistir seria jogar o amor-próprio pela janela e desperdiçar uma energia que é, afinal de contas, preciosa. Para me blindar contra as frustrações, essa foi a estratégia que adotei: olho por olho, dente por dente. Se eu não fui capaz de dar um murro na mesa, pelo menos dentro de mim eu sinto que fiz justiça de alguma forma.

É claro que ser assim tem um custo, e ele não é baixo. Quem guarda rancor vive armado e passa a carregar nas costas um verdadeiro baú de tralhas, que vão se acumulando com os muitos desaforos da vida. Rancores fazem mal, deixam o semblante carregado e um resíduo amargo na garganta. Envelhecem o espírito. Por que é tão difícil se livrar deles? Porque existe a voz do orgulho, que pensa que deixar aquilo barato seria uma desonra. Que perdoar o outro não é nobre, muito menos justo, quando foi ele que sacaneou, e nem se preocupou em reparar o mal. No fundo as pessoas sempre têm opção: se elas optaram por pisar na bola, foi porque quiseram, e não se importaram com você. Deixar barato e engolir o sapo é endossar uma atitude errada e dar uma anistia a quem não merece.

Sempre levei a vida desse jeito, até que um recente insight me levou a mudar de atitude. A gente guarda o rancor e acha que, dessa maneira, está fazendo "justiça" e punindo a outra pessoa. Mas não está. Quando eu alimento o rancor, não estou fazendo nenhum mal àquela pessoa, mas apenas a mim mesmo. Quem sofrerá e pagará o pato não é ela, que vive ótima e repousa a cabeça serena no travesseiro, mas eu. E isso não é justo. Nem inteligente. Por isso, tenho feito um esforço extra para ser diferente. Não pelos outros, não para poupá-los, mas por mim mesmo e pelo meu bem-estar. Para me desvencilhar do peso, ficar leve e deixar a cabeça livre para pensar em coisas melhores. Hoje, deixo que a vida se encarregue de ensinar a lição que cada um merece. E estou aprendendo até a devolver o sorriso falso e ser político, quando isso me convém. Se bobear, posso até abraçar e sair junto na foto, feito Lula e Collor. O que não quer dizer que eu tenha esquecido, muito menos perdoado! Afinal, os elefantes nunca esquecem.